quinta-feira, 16 de abril de 2015

Crítica – Demolidor (Netflix)


Enfim chegamos ao dia 10 de abril, e uma das séries mais esperadas do ano pela comunidade nerd fez sua estreia fenomenal. Após terminar de assistir a nova série produzida pela Marvel e ABC exclusivamente para o Netflix, tive a certeza de finalmente ter testemunhado uma adaptação de quadrinhos que foge do gênero inserido, assim como Christopher Nolan conseguiu em Batman – O Cavaleiro das Trevas. O seriado demonstra que existe espaço para se trabalhar um herói cultuado pelos fãs respeitando integralmente sua mitologia, além de apresentar aos que desconhecem os quadrinhos um material de primeira, que pode ser apreciado independentemente de qualquer outra consideração.
Demolidor é uma série de tv policial à princípio, e um thriller dramático como segundo plano e somente depois, sim uma obra baseada em quadrinhos de super heróis. Contendo 13 episódios, a série fez jus ao personagem, trazendo uma abordagem adulta e sombria ao contar suas origens e como chegou a ser o herói que traja um uniforme de demônio e protege o bairro de Hell’s Kitchen em Nova York.

A estrutura segue a linha de investigação policial em que um grupo de pessoas – os advogados iniciantes Matt Murdock(Charlie Cox) e Foggy Nelson(Elden Henson) e a vítima transformada em secretária/ braço direito Karen Page(Deborah Ann Woll) tentam de dissipar a onda de crimes que assolam Hell’s Kitchen, cuja trilha acaba levando a Wilson Fisk, o Rei do Crime dos quadrinhos, brilhantemente interpretado pelo ator Vincent D’Onofrio.  Entretanto, Matt Murdock, cego desde dos nove anos em virtude de um acidente com elementos químicos que amplificaram seus demais sentidos a níveis sobre-humanos, também atua à margem da lei, como vigilante mascarado vestido de preto.
O panorama sob o protagonista é um dos pontos positivos da série, onde este vai sendo construído através de flashbacks de sua infância no decorrer dos capítulos. Desde do momento do acidente que afetou sua visão, seu pai, até seu treinamento para aperfeiçoar suas habilidades. Portanto, o quebra-cabeças começa a ser montado, que por sinal é semelhante a versão de Frank Miller e John Romita Jr na minissérie Homem Sem Medo. O que por sua vez, essa HQ serve de base e inspiração para muito material na série da Netflix.
Certamente Steven S Deknight soube proporcionar um show à parte, no que diz respeito a humanidade de seus personagens, algo muito bem trabalhado, ao ponto de abafar inteligentemente a relevância dos super poderes de Murdock. Pouco vemos de suas habilidades especiais e toda vez que há um combate, sentimos o esforço do personagem em derrubar a socos e pontapés seus adversários (que, diga-se de passagem, são seres humanos comuns e não alienígenas ou super vilões) em lutas coreografadas com habilidade e veracidade. Apenas um exemplo disso foi na luta ao final do segundo episódio em que Murdock, com seu uniforme improvisado, tem um longo embate com diversos capangas armados: cada soco é dado com o corpo, não só com a mão; cada sopapo começa com um impulso, nunca vindo do nada; cada segundo de descanso que o herói tem ele aproveita para recuperar o fôlego. A luta é difícil, penosa, dolorosa e, dentro da lógica de uma série de TV em que o protagonista tem habilidades especiais, mas não conta com a superforça, martelos mágicos ou visão de calor, perfeitamente cabível. Sem mencionar, o fato de que essa cena ser um plano-sequência sem cortes, o que acrescenta outra camada de apreciação. E convenhamos “um Murdock sempre se levanta” não é?
O triunfo da série está na construção de cada personagem, que nos faz genuinamente se preocupar com eles. Como por exemplo o senso de inocência em Matt, Foggy e Karen, que querem ajudar a população local, mas não fazem ideia do tamanho do problema em que estão se metendo. A verdade é que Matt Murdock – o Demolidor – nem de longe lembra outros super-heróis. De “super” mesmo, só sua vontade de fazer o bem, de ajudar a limpar Hell’s Kitchen dos maus elementos. O mesmo vale para o divertido Foggy Nelson, que tem um fortíssimo laço de amizade com Murdock(o bromance mais famoso dos quadrinhos) e Karen Page. Somados a eles, existem ainda, o repórter experiente Ben Urich, da velha guarda, que sempre busca a verdade da maneira mais ética possível. E temos Claire Temple (Rosario Dawson) a enfermeira que encontra Matt jogado numa lixeira  e salva sua vida costurando seus ferimentos. A partir daí, os dois acabam se relacionando, pois a vida de Claire passa a correr perigo devido a seu envolvimento com o vigilante.
A Claire Temple da série é uma mistura da personagem de mesmo nome nos quadrinhos com a Enfermeira Noturna, chamada Linda Carter e tem uma clínica secreta para cuidar dos ferimentos de vários heróis que decidem procurá-la, o que leva a crer que veremos uma participação maior da personagem nas outras séries urbanas da Netflix com os personagens Marvel.

Cada um deles é vivido por um ator escolhido a dedo em uma combinação improvável. Charlie cox que até agora era inexpressivo, tem a oportunidade de uma vida ao encarnar Matt Murdock/Demolidor. Seu trabalho molda o personagem com humanidade e força. Nada de músculos definidos ou beleza adolescente. Ele é um homem profundamente religioso que tem uma missão, mas não tem certeza se pode fugir do demônio que o assombra. Vemos a dúvida em seu semblante o tempo todo e isso é essencial para que acreditemos nele como alguém falho, mas obstinado; solitário, mas amigo; verdadeiro, mas com segredos sombrios. Seu melhor amigo Foggy Nelson, é vivido por Elden Henson, outro ator substancialmente desconhecido, mas que consegue ser, facilmente a luz enquanto Murdock é a escuridão. Sua felicidade inebriante mesmo diante das mais adversas situações leva aos únicos momentos descontraídos da temporada que, porém, nunca são forçados ou repetitivos. A bela Deborah Ann Woll (Jessica Hamby, de True Blood) vive Karen Page, a “donzela em perigo” que imediatamente dá a volta por cima e mostra ser muito mais do que esse rótulo injusto indica.
Mas agora vamos falar dos vilões. Sim, vilões. No plural mesmo. Porque nem só de Rei do Crime vive o Demolidor. Aliás, como a série trata de ser uma origem não apenas para o Demolidor, mas também para Wilson Fisk, o criminoso não chega a ser chamado em nenhum momento pela alcunha de “Rei do Crime” de fato. Porém, isso não desmerece e nem diminui o poder que o personagem tem na série. Chamado nos primeiros episódios de apenas “o empregador” por seu lacaio de confiança James Wesley (Toby Leornard Moore) Fisk age como uma sombra que está em cada canto da cidade, com influência em cada ato criminoso, e com ligações que vão até mesmo ao departamento de polícia e o sistema judiciário.
O fato é que na série, Fisk não é o único vilão que assola a Cozinha do Inferno, apesar de obviamente ser o grande antagonista do Demolidor. O criminoso divide territórios com os irmãos russos Anatoly (Gideon Emery) e Vladimir (Nikolai Nikolaeff), a máfia japonesa liderada por Nobu (Peter Shinkoda), a tríade chinesa encabeçada por Madame Gao (Wai Ching Ho), além do interesseiro Leland Owsley (Bob Gunton), o Coruja dos quadrinhos. Todos os vilões têm um propósito e não ficam perdidos na trama, porém eles acabam sendo um pouco menos desenvolvidos de como deveria, pois os holofotes estão para Wilson Fisk, então o desenvolvimento dos mesmos fica para uma próxima temporada.
Quando vemos Fisck pela primeira vez, a câmera está em sua mão, especialmente para capturar o tique nervoso em seu dedo enquanto ele observa um quadro em uma galeria de arte. Esse pequeno aspecto já prenuncia o tipo de personagem que veremos a telinha dalí pra frente: um homem com uma tristeza profunda, que encontra esperança de normalidade por intermédio de uma mulher, mas que sabe exatamente quem é e o que deseja. Cabe a nós espectadores e aos heróis da série descobrir exatamente quem ele é, e aqui vemos um dos momentos de maior brilhantismo no roteiro. Tudo é relativizado e rótulos são derrubados. As dúvidas de Matt Murdock sobre quem ele é e qual é a sua missão refletem no que Wilson Fisk é ou diz ser e vice-versa. É um fascinante jogo psicológico que empresta mais camadas ainda à uma série que, ela própria, foge de rotulação.
E essa fuga de rotulação não existe apenas na tentativa de classificar a série como sendo ou não “de super-herói”. Um exemplo simples é o artifício do flashback, algo clichê e comum demais em séries, acontece que em Demolidor, seu uso é cirúrgico e não segue uma linearidade. Existe apenas para enriquecer a história e não somente existir, para ocupar tempo nos episódios ou para introduzir aspectos narrativos externos ao que vemos no presente. Da mesma maneira, o tom sombrio não é aleatório. Não é o “sombrio” só porque é moda. A escuridão, é parte da narrativa. Observamos para um microcosmo de uma cidade suja e aterradora que tem suas próprias regras e com um protagonista que depende do elemento surpresa gerado pela escuridão para compensar o fato de ser alguém quase comum. Mas o sombrio da série está presente mesmo nas sequências fotografadas à luz do dia. Afinal, é ou não sombrio o apartamento asséptico de Fisk e seu ritual matinal de omelete e escolha de ternos (todos quase iguais)? É ou não sombria a vista panorâmica da cidade que vemos a partir da outra margem do Hudson, com um peso que sabemos que existe e que é quase palpável? É ou não sombria a sequência artificialmente idílica da iluminada conversa entre Madama Gao e Wilson Fisk no topo arborizado de um prédio em Manhattan? Sombrio não necessariamente é escuro. Sombrio é o estado de espírito da série, algo que em nenhum momento, absolutamente nenhum mesmo, perdemos de vista. E, quando a escuridão é quebrada, ela é quebrada por uma luz amarelada que nos remete à enfermidade, claramente significando a infecção putrefata pela qual passa Hell’s Kitchen.
Ué mas não tem defeitos? A grande verdade é que sim, há defeitos, alguns mais visíveis outros menos. O que mais me chamou atenção foi a necessidade constante de diálogos expositivos para reiterar algumas situações, especialmente a rede de vilões controlada por Fisk e sua estrutura corporativa. A reiteração existe e faz parte da natureza de uma série de TV, no entanto, em Demolidor, ela às vezes faz a narrativa parar para um diálogo tanto que quanto artificial, então depois tudo continue normalmente. Como se o personagem parasse, olhasse para câmara e explicasse aos espectadores o que está acontecendo.
Outros aspectos menores são os menos problemáticos, mas eles estão lá. São personagens que entram e saem da temporada sem maiores explicações, alguns claramente para criar ganchos para histórias futuras, outros simplesmente por deixarem de ter utilidade. Em um caso ou outro, deixam dúvidas no espectador e criam pequenos buracos no roteiro.
Sobre o Universo Cinematográfico Marvel, a série está profundamente encravada nele. Mas não esperem menções escancaradas e mal escritas. Tudo é trabalho com discrição, dentro do que é realmente necessário. Homem de Ferro, Capitão América, Thor e Hulk têm suas presenças sentidas, mas eles todos estão num plano distante da realidade do “herói urbano”. Os Vingadores cuidam do macro, o Demolidor do micro. Há espaço para convivência perfeita dos dois tipos de heróis, sem que um precise fazer vista ao outro. A série é tratada com consequência direta após a batalha de Nova York, aquele que vimos em Os Vingadores e a ação tem início 18 meses depois que alienígenas quase destruíram a cidade. O caos causado pela cidade, mais especificamente em Hell’s Kitchen, é usado como catapulta para toda a mecânica por trás da presença de aproveitadores de toda sorte, dos pequenos ladrões até a figura de Wilson Fisk. Tudo se justifica em uma escala, porém que não alcança os olhares dos grandes super heróis dos filmes, permitindo o comparecimento do Demolidor como um vigilante local. A série, em outras palavras, ocupa um espaço que coexiste com tudo o que vimos até agora de maneira pacífica e astutamente escrita.
Demolidor é mais um de fato, mais um sucesso na série de êxitos do Netflix. Pode e deve ser vista aos fãs e não fãs de quadrinhos. Mais um motivo os amantes de séries policiais. E aos fãs fará brilhar os olhos acompanhar o se agigantar da mitologia do Homem Sem Medo com tamanha fidelidade na tela. Agora é aguardar as próximas séries da parceria entre Marvel e Netflix, que são Jessica Jones, Luke Cage e Punho de Ferro, e aguardar o retorno do Demolidor em Defensores, que promete unir todos esses personagens em uma super-equipe de heróis urbanos.

Nota: 9,5


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