Enfim chegamos ao dia 10 de abril, e uma das séries mais
esperadas do ano pela comunidade nerd fez sua estreia fenomenal. Após terminar
de assistir a nova série produzida pela Marvel e ABC exclusivamente para o
Netflix, tive a certeza de finalmente ter testemunhado uma adaptação de
quadrinhos que foge do gênero inserido, assim como Christopher Nolan conseguiu
em Batman – O Cavaleiro das Trevas. O seriado demonstra que existe espaço para
se trabalhar um herói cultuado pelos fãs respeitando integralmente sua
mitologia, além de apresentar aos que desconhecem os quadrinhos um material de
primeira, que pode ser apreciado independentemente de qualquer outra
consideração.
Demolidor é uma série de tv policial à princípio, e um thriller
dramático como segundo plano e somente depois, sim uma obra baseada em
quadrinhos de super heróis. Contendo 13 episódios, a série fez jus ao
personagem, trazendo uma abordagem adulta e sombria ao contar suas origens e
como chegou a ser o herói que traja um uniforme de demônio e protege o bairro
de Hell’s Kitchen em Nova York.
A estrutura segue a linha de investigação policial em que
um grupo de pessoas – os advogados iniciantes Matt Murdock(Charlie Cox) e Foggy
Nelson(Elden Henson) e a vítima transformada em secretária/ braço direito Karen
Page(Deborah Ann Woll) tentam de dissipar a onda de crimes que assolam Hell’s
Kitchen, cuja trilha acaba levando a Wilson Fisk, o Rei do Crime dos
quadrinhos, brilhantemente interpretado pelo ator Vincent D’Onofrio. Entretanto, Matt Murdock, cego desde dos nove
anos em virtude de um acidente com elementos químicos que amplificaram seus
demais sentidos a níveis sobre-humanos, também atua à margem da lei, como
vigilante mascarado vestido de preto.
O panorama sob o protagonista é um dos pontos positivos da
série, onde este vai sendo construído através de flashbacks de sua infância no
decorrer dos capítulos. Desde do momento do acidente que afetou sua visão, seu
pai, até seu treinamento para aperfeiçoar suas habilidades. Portanto, o
quebra-cabeças começa a ser montado, que por sinal é semelhante a versão de
Frank Miller e John Romita Jr na minissérie Homem Sem Medo. O que por sua vez,
essa HQ serve de base e inspiração para muito material na série da Netflix.
Certamente Steven S Deknight soube proporcionar um show à
parte, no que diz respeito a humanidade de seus personagens, algo muito bem
trabalhado, ao ponto de abafar inteligentemente a relevância dos super poderes
de Murdock. Pouco vemos de suas habilidades especiais e toda vez que há um
combate, sentimos o esforço do personagem em derrubar a socos e pontapés seus
adversários (que, diga-se de passagem, são seres humanos comuns e não alienígenas
ou super vilões) em lutas coreografadas com habilidade e veracidade. Apenas um
exemplo disso foi na luta ao final do segundo episódio em que Murdock, com seu
uniforme improvisado, tem um longo embate com diversos capangas armados: cada
soco é dado com o corpo, não só com a mão; cada sopapo começa com um impulso,
nunca vindo do nada; cada segundo de descanso que o herói tem ele aproveita
para recuperar o fôlego. A luta é difícil, penosa, dolorosa e, dentro da lógica
de uma série de TV em que o protagonista tem habilidades especiais, mas não
conta com a superforça, martelos mágicos ou visão de calor, perfeitamente
cabível. Sem mencionar, o fato de que essa cena ser um plano-sequência sem
cortes, o que acrescenta outra camada de apreciação. E convenhamos “um Murdock sempre se levanta” não é?
O triunfo da série está na construção de cada personagem,
que nos faz genuinamente se preocupar com eles. Como por exemplo o senso de inocência
em Matt, Foggy e Karen, que querem ajudar a população local, mas não fazem
ideia do tamanho do problema em que estão se metendo. A verdade é que Matt
Murdock – o Demolidor – nem de longe lembra outros super-heróis. De “super”
mesmo, só sua vontade de fazer o bem, de ajudar a limpar Hell’s Kitchen dos
maus elementos. O mesmo vale para o divertido Foggy Nelson, que tem um fortíssimo
laço de amizade com Murdock(o bromance mais famoso dos quadrinhos) e Karen
Page. Somados a eles, existem ainda, o repórter experiente Ben Urich, da velha
guarda, que sempre busca a verdade da maneira mais ética possível. E temos
Claire Temple (Rosario Dawson) a enfermeira que encontra Matt jogado numa
lixeira e salva sua vida costurando seus
ferimentos. A partir daí, os dois acabam se relacionando, pois a vida de Claire
passa a correr perigo devido a seu envolvimento com o vigilante.
A Claire Temple da série é uma mistura da personagem de
mesmo nome nos quadrinhos com a Enfermeira
Noturna, chamada Linda Carter e tem uma clínica secreta para cuidar dos
ferimentos de vários heróis que decidem procurá-la, o que leva a crer que
veremos uma participação maior da personagem nas outras séries urbanas da
Netflix com os personagens Marvel.
Cada um deles é vivido por um ator escolhido a dedo em uma
combinação improvável. Charlie cox que até agora era inexpressivo, tem a
oportunidade de uma vida ao encarnar Matt Murdock/Demolidor. Seu trabalho molda
o personagem com humanidade e força. Nada de músculos definidos ou beleza
adolescente. Ele é um homem profundamente religioso que tem uma missão, mas não
tem certeza se pode fugir do demônio que o assombra. Vemos a dúvida em seu
semblante o tempo todo e isso é essencial para que acreditemos nele como alguém
falho, mas obstinado; solitário, mas amigo; verdadeiro, mas com segredos
sombrios. Seu melhor amigo Foggy Nelson, é vivido por Elden Henson, outro ator
substancialmente desconhecido, mas que consegue ser, facilmente a luz enquanto
Murdock é a escuridão. Sua felicidade inebriante mesmo diante das mais adversas
situações leva aos únicos momentos descontraídos da temporada que, porém, nunca
são forçados ou repetitivos. A bela Deborah Ann Woll (Jessica Hamby, de True
Blood) vive Karen Page, a “donzela em perigo” que imediatamente dá a volta por
cima e mostra ser muito mais do que esse rótulo injusto indica.
Mas agora vamos falar dos vilões. Sim, vilões. No plural
mesmo. Porque nem só de Rei do Crime vive o Demolidor. Aliás, como a série
trata de ser uma origem não apenas para o Demolidor, mas também para Wilson
Fisk, o criminoso não chega a ser chamado em nenhum momento pela alcunha de
“Rei do Crime” de fato. Porém, isso não desmerece e nem diminui o poder que o
personagem tem na série. Chamado nos primeiros episódios de apenas “o
empregador” por seu lacaio de confiança James Wesley (Toby Leornard Moore) Fisk
age como uma sombra que está em cada canto da cidade, com influência em cada
ato criminoso, e com ligações que vão até mesmo ao departamento de polícia e o
sistema judiciário.
O fato é que na série, Fisk não é o único vilão que assola
a Cozinha do Inferno, apesar de obviamente ser o grande antagonista do
Demolidor. O criminoso divide territórios com os irmãos russos Anatoly (Gideon
Emery) e Vladimir (Nikolai Nikolaeff), a máfia japonesa liderada por Nobu
(Peter Shinkoda), a tríade chinesa encabeçada por Madame Gao (Wai Ching Ho),
além do interesseiro Leland Owsley (Bob Gunton), o Coruja dos quadrinhos. Todos
os vilões têm um propósito e não ficam perdidos na trama, porém eles acabam
sendo um pouco menos desenvolvidos de como deveria, pois os holofotes estão
para Wilson Fisk, então o desenvolvimento dos mesmos fica para uma próxima
temporada.
Quando vemos Fisck pela primeira vez, a câmera está em sua
mão, especialmente para capturar o tique nervoso em seu dedo enquanto ele
observa um quadro em uma galeria de arte. Esse pequeno aspecto já prenuncia o
tipo de personagem que veremos a telinha dalí pra frente: um homem com uma
tristeza profunda, que encontra esperança de normalidade por intermédio de uma
mulher, mas que sabe exatamente quem é e o que deseja. Cabe a nós espectadores
e aos heróis da série descobrir exatamente quem ele é, e aqui vemos um dos
momentos de maior brilhantismo no roteiro. Tudo é relativizado e rótulos são
derrubados. As dúvidas de Matt Murdock sobre quem ele é e qual é a sua missão
refletem no que Wilson Fisk é ou diz ser e vice-versa. É um fascinante jogo
psicológico que empresta mais camadas ainda à uma série que, ela própria, foge
de rotulação.
E essa fuga de rotulação não existe apenas na tentativa de
classificar a série como sendo ou não “de super-herói”. Um exemplo simples é o
artifício do flashback, algo clichê e comum demais em séries, acontece que em
Demolidor, seu uso é cirúrgico e não segue uma linearidade. Existe apenas para
enriquecer a história e não somente existir, para ocupar tempo nos episódios ou
para introduzir aspectos narrativos externos ao que vemos no presente. Da mesma
maneira, o tom sombrio não é aleatório. Não é o “sombrio” só porque é moda. A
escuridão, é parte da narrativa. Observamos para um microcosmo de uma cidade
suja e aterradora que tem suas próprias regras e com um protagonista que
depende do elemento surpresa gerado pela escuridão para compensar o fato de ser
alguém quase comum. Mas o sombrio da série está presente mesmo nas sequências
fotografadas à luz do dia. Afinal, é ou não sombrio o apartamento asséptico de
Fisk e seu ritual matinal de omelete e escolha de ternos (todos quase iguais)?
É ou não sombria a vista panorâmica da cidade que vemos a partir da outra
margem do Hudson, com um peso que sabemos que existe e que é quase palpável? É
ou não sombria a sequência artificialmente idílica da iluminada conversa entre
Madama Gao e Wilson Fisk no topo arborizado de um prédio em Manhattan? Sombrio
não necessariamente é escuro. Sombrio é o estado de espírito da série, algo que
em nenhum momento, absolutamente nenhum mesmo, perdemos de vista. E, quando a
escuridão é quebrada, ela é quebrada por uma luz amarelada que nos remete à
enfermidade, claramente significando a infecção putrefata pela qual passa Hell’s
Kitchen.
Ué mas não tem defeitos? A grande verdade é que sim, há
defeitos, alguns mais visíveis outros menos. O que mais me chamou atenção foi a
necessidade constante de diálogos expositivos para reiterar algumas situações,
especialmente a rede de vilões controlada por Fisk e sua estrutura corporativa.
A reiteração existe e faz parte da natureza de uma série de TV, no entanto, em
Demolidor, ela às vezes faz a narrativa parar para um diálogo tanto que quanto
artificial, então depois tudo continue normalmente. Como se o personagem
parasse, olhasse para câmara e explicasse aos espectadores o que está
acontecendo.
Outros aspectos menores são os menos problemáticos, mas
eles estão lá. São personagens que entram e saem da temporada sem maiores
explicações, alguns claramente para criar ganchos para histórias futuras,
outros simplesmente por deixarem de ter utilidade. Em um caso ou outro, deixam
dúvidas no espectador e criam pequenos buracos no roteiro.
Sobre o Universo Cinematográfico Marvel, a série está
profundamente encravada nele. Mas não esperem menções escancaradas e mal
escritas. Tudo é trabalho com discrição, dentro do que é realmente necessário.
Homem de Ferro, Capitão América, Thor e Hulk têm suas presenças sentidas, mas
eles todos estão num plano distante da realidade do “herói urbano”. Os
Vingadores cuidam do macro, o Demolidor do micro. Há espaço para convivência
perfeita dos dois tipos de heróis, sem que um precise fazer vista ao outro. A
série é tratada com consequência direta após a batalha de Nova York, aquele que
vimos em Os Vingadores e a ação tem início 18 meses depois que alienígenas
quase destruíram a cidade. O caos causado pela cidade, mais especificamente em
Hell’s Kitchen, é usado como catapulta para toda a mecânica por trás da
presença de aproveitadores de toda sorte, dos pequenos ladrões até a figura de
Wilson Fisk. Tudo se justifica em uma escala, porém que não alcança os olhares
dos grandes super heróis dos filmes, permitindo o comparecimento do Demolidor
como um vigilante local. A série, em outras palavras, ocupa um espaço que
coexiste com tudo o que vimos até agora de maneira pacífica e astutamente
escrita.
Demolidor é mais um
de fato, mais um sucesso na série de êxitos do Netflix. Pode e deve ser vista
aos fãs e não fãs de quadrinhos. Mais um motivo os amantes de séries policiais.
E aos fãs fará brilhar os olhos acompanhar o se agigantar da mitologia do Homem
Sem Medo com tamanha fidelidade na tela. Agora é aguardar as próximas séries da
parceria entre Marvel e Netflix, que são Jessica Jones, Luke Cage e Punho de
Ferro, e aguardar o retorno do Demolidor em Defensores, que promete unir todos
esses personagens em uma super-equipe de heróis urbanos.
Nota: 9,5